Certo
dia, descias a minha rua, alvo e sorridente, como se por mero acaso não fosses
tu quem és e eu quem tu conhecias…
Em
resposta ao teu fingimento, uma resposta fisiológica imediata: o bloqueio da memória. Negado o acesso ao
conhecimento e em negação absoluta, o meu instinto manteve-me suspensa. Creio
que me procurava impedir de aceder ao campo onde se semeiam experiências e onde
estas germinam e dão frutos.
Hoje,
sei. Recordo que sacudi a cabeça, como se o gesto sacudisse o alerta que me
sacudiu a espinha. Tu sorriste e eu registei, ainda que naquele momento e por
inúmeras luas, desse facto não tivesse conhecimento.
Não
sei que destino traçavas quando te desenhaste para mim. Apenas sei que agarrei
firme no apagador e desenhei um círculo à minha volta. Ainda que sob forte
escudo, creio que não fui a tempo de impedir a mente de te lançar um olhar
atento e tantos ciclos lunares depois, dei por mim a recuperar uma memória que
não sabia que tinha e a interrogar-me acerca do rapaz que, certo do seu
destino, à minha rua desceu e me sorriu...
Ironicamente,
desde que colidimos de forma quase trágica, passámos a cair acidentalmente na
vida um do outro... Creio que tal aconteça sem que um de nós estenda a perna
para o outro cair. Verdade ou não, certo é que estes tropeções acabam sempre da
mesma forma: encarceramento automatizado, recolhimento à velocidade da luz na protecção da minha concha. Não te deixo entrar e não consigo sair.
Não
sorrias. Não é medo de ti, nem medo de mim. É receio de infringir uma proibição
tão antiga e tão profundamente escavada que criou raízes. Uma proibição
enraizada que se manifesta em ondas de atrapalhação e eu não sei nadar.
Afogo-me como uma descoordenada a tentar agarrar algo delicado.
Creio
que me atrapalho, sinto o desastre e não o impeço. E quanto mais próximos estamos,
mais perto da verdade do que somos e do que sentimos, mais dificuldades tenho....
Creio que existimos e ainda que me obriguem a negá-lo, ainda que o negue, a
verdade é que existem outros lugares onde uma mulher pode guardar as suas
percepções e não ser incomodada por isso.
Imagino
e através desse secreto poder, elevo-me além das coordenadas pré-estabelecidas,
insatisfeita e exigente, traçando tangentes aos afectos. No horizonte sou tudo,
mas na realidade, uma intersecção verdadeira e sou um quase qualquer coisa: Um
quase a chegar, um quase a partir, um quase a ficar e um quase a fugir. Colho
os frutos amargos que sangrei.
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