sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Creio...



Certo dia, descias a minha rua, alvo e sorridente, como se por mero acaso não fosses tu quem és e eu quem tu conhecias…

Em resposta ao teu fingimento, uma resposta fisiológica imediata:  o bloqueio da memória. Negado o acesso ao conhecimento e em negação absoluta, o meu instinto manteve-me suspensa. Creio que me procurava impedir de aceder ao campo onde se semeiam experiências e onde estas germinam e dão frutos.

Hoje, sei. Recordo que sacudi a cabeça, como se o gesto sacudisse o alerta que me sacudiu a espinha. Tu sorriste e eu registei, ainda que naquele momento e por inúmeras luas, desse facto não tivesse conhecimento.

Não sei que destino traçavas quando te desenhaste para mim. Apenas sei que agarrei firme no apagador e desenhei um círculo à minha volta. Ainda que sob forte escudo, creio que não fui a tempo de impedir a mente de te lançar um olhar atento e tantos ciclos lunares depois, dei por mim a recuperar uma memória que não sabia que tinha e a interrogar-me acerca do rapaz que, certo do seu destino, à minha rua desceu e me sorriu...

Ironicamente, desde que colidimos de forma quase trágica, passámos a cair acidentalmente na vida um do outro... Creio que tal aconteça sem que um de nós estenda a perna para o outro cair. Verdade ou não, certo é que estes tropeções acabam sempre da mesma forma: encarceramento automatizado, recolhimento à velocidade da luz na protecção da minha concha. Não te deixo entrar e não consigo sair.

Não sorrias. Não é medo de ti, nem medo de mim. É receio de infringir uma proibição tão antiga e tão profundamente escavada que criou raízes. Uma proibição enraizada que se manifesta em ondas de atrapalhação e eu não sei nadar. Afogo-me como uma descoordenada a tentar agarrar algo delicado.

Creio que me atrapalho, sinto o desastre e não o impeço. E quanto mais próximos estamos, mais perto da verdade do que somos e do que sentimos, mais dificuldades tenho.... Creio que existimos e ainda que me obriguem a negá-lo, ainda que o negue, a verdade é que existem outros lugares onde uma mulher pode guardar as suas percepções e não ser incomodada por isso.

Imagino e através desse secreto poder, elevo-me além das coordenadas pré-estabelecidas, insatisfeita e exigente, traçando tangentes aos afectos. No horizonte sou tudo, mas na realidade, uma intersecção verdadeira e sou um quase qualquer coisa: Um quase a chegar, um quase a partir, um quase a ficar e um quase a fugir. Colho os frutos amargos que sangrei.



Creio que quanto mais tempo passo em pousio, mais dificuldade terei em espreguiçar as minhas asas. Entretanto, o Tempo rouba-me as penas.


Autor desconhecido (contém hiperligação para a página de origem)





terça-feira, 2 de setembro de 2014

Pensamentos

Ema Moura


Caminho descalça por estas ruas repletas de ruído surdo, percorro suas montras, espreito em janelas vizinhas,  não paro, não fico.

As pedras da calçada ferem-me os pés, o sol obriga-me a fechar os olhos e sigo em frente confiando em outros sentidos. Não tenho medo desde que possa olhar para trás.

O som das esplanadas mistura-se com uma palete de odores, essências da vida nem sempre fáceis de decifrar. Inspiro profundamente, não porque estou aborrecida, mas porque quero captar as fragrâncias singulares e a que procuro aguça-me o espírito, tanto quanto o atormenta.

Prossigo no meu caminhar, aparentemente, alienado e sem rumo. Distancio-me dos olhares que não observam mais do que uma superfície. Um nível abaixo da pele e tudo em mim se mistura, combina e intensifica. E o que faço confunde-se com o que fiz, assim como o que sinto me deixa alerta, suspensa e hesitante...

O ruído intensifica-se, assim como o verde da camisa esquecida no estendal. Roubaram-na e eu assisti, com o coração perto da boca e a martelar-me o ouvido. Absorvi o aroma, captei a excitação, tomei-a para mim e corri, descalça, ferida, mas feliz.

Caminho descalça pela rua, olhando em todas as direcções, tentando registar o mais possível as emoções sentidas a cada passo. Procuro confundir os sentidos, na esperança que a memória fique envolta numa névoa que se adensa com o passar dos anos, mas nem as pedras da calçada que me ferem os pés, nem a palete de odores que me deixa inebriada ou o nevoeiro cerrado que me envolve, repelem o sonho que me atormenta o espírito.


Sonho, disse eu, não pesadelo!
Um sonho perigoso que não obedece ao ciclo que alterna entre a lua e o sol. Vivo enquanto sonho e o que sonho são memórias de uma vida, esperanças que não se concretizaram, desejos que a realidade não alimenta, não sacia e não aniquila. Exasperante como as perguntas impertinentes que se insinuam e advogam a minha atenção: Recordas-te? É verdadeiro? O que pensas? O que queres? O que sentes?

Sinto e acuso a pressão.  Não há alívio quando acordo, apenas consciência e uma vez desperta, sigo o rastro de mim mesma.
Ando descalça e enterro os dedos na areia, sinto-a quente. Ouço o som do riso que ri contra vontade. Ouço a voz quente e o suspiro que transpira e se agita na pele. Não paro, não fico.

Caminho depressa, como quando era fera e me zangava, criando distâncias do comprimento de um abraço e a dois passos do céu da boca. Essa tonta que nos divertia, enterrei-a sob pilhas de desilusão e ainda assim, respira.
Escuto seus pensamentos:

"Enquanto não puder existir,
continuarei a olhar para trás para que não tenha medo,
a andar descalça para que sinta o caminho, 
ao alcance de um abraço, 
absorta no céu da tua boca."