quinta-feira, 16 de junho de 2011

Ventura

Passos apressados, saltos que ribombam como trovoada, a tempestade que se aproxima, o dilúvio deleitoso…
Cintos que se desprendem da fivela castradora, tecidos que se abrem, escancarando vontades, hesitações que se põem de lado…
Meias que se rasgam como folhas outonais, frágeis entre dedos de poderosa ansiedade. Vestidos que esvoaçam animados pelo vento, renegam o momento em que foram atirados, esquecidos no sabor do momento.
«A paixão - bebida que se bebeu de um trago, grau que potencia o braseiro em nós, veicula da vontade mais genuína, abandono de todos os convénios – é um caso sério.»
Ligas que se desligam do olhar e se desfazem na seda e nos rendilhados que as revestem. Corpete, que sufoca o peito que arfa, estrangula o rubor na face que cora, evitando olhar em frente.
Perfume como uma pele protectora, um mimo que não se conta a ninguém, a gota que carregamos desnudos e que deixamos presa por entre lençóis.
«É realmente grave a paixão, quer esteja presente ou ausente, nunca se silencia, não se contenta e não se esgota… Pura energia, seiva que penetra nas veias e despeja no coração doses maciças de adrenalina.»
Movimento jocoso toma posse do corpo que baila como uma flor aos primeiros raios de sol. Um girassol que brilha, uma divindade que se homenageia. A entrega não é mais do que a aceitação em estado sólido, o abraçar da realidade num corpo que nos alimenta.
«A realidade não é dúbia! De facto, o prazer é parte de um todo que não pode ser ignorado ou maltratado. Torna-se, assim, o fogoso sentimento numa tentação severa…»
Destino, química, essência, recorrência, pouco importa as razões que levam ao inicio da aventura. Tão pouco é relevante o seu fim. A aventura deveria ser eterna, assim como, o enlace entre a descoberta e a confiança em si e no Outro.
Lição! «Nunca completamente aprendida e tantas vezes ignorada.» Viver é a aventura e os sentidos, uma bússola que nos indica se o estamos a fazer bem… Impossível ignorar, não saber…
Sorrio! – Sublinho, desenhando a felicidade e estampando-a no rosto. Cada vez mais me incomoda quem, numa onda diferente, se julga no direito de se apropriar dos passos que são meus.

O Universo não existe por mero acaso e os alinhamentos são de facto fruto de uma ciência divina. No encontro de si e dos Outros, um código e uma chave são tão essenciais como o ter um corpo e a vontade de o explorar. Sem receio, ainda que o céu se apresente com uma cortina de água, dispo-me de todos os convénios e contendo apenas essência, enlaço a aventura.
Pela paz e pelo bem, vive e deixa viver,


segunda-feira, 13 de junho de 2011

Se fosse um rebento...


Imagem: Autor desconhecido

Observo o quadro natural que se ergue perante os olhos, admiro a simplicidade do seu existir. Pergunto-me quantos antes de mim pararam, extasiados pelo movimento ondulante das folhas em suas copas majestosas. Árvores imponentes se afirmaram em terreno fértil, surgiram de frágeis rebentos, criaram raízes nas histórias dos homens.

Observo a superfície que oculta as suas densas raízes, vejo como o solo fervilha de vida e imagino-me como parte daquele todo!
A minha natureza insegura, marcada por ferimentos que não se curam, turva-me o reflexo daquele quadro. Agita-me as águas subterrâneas, já por si tumultuosas, fazendo emergir questões em catadupa:
_ Se fosse um rebento, a sombra das grandes árvores serviria de protecção? Teriam essas árvores o desejo de me privarem dos raios alimentares? Se fosse um daqueles rebentos teria espaço para crescer? Poderia, na minha frágil existência, almejar espalhar as minhas raízes?

Fixar raízes… Algo dentro de mim impele-me a levantar a âncora. Dificilmente, as minhas raízes se fixariam, ainda que em terreno fértil, isto é, se fosse um rebento. Como sou, imagino-me à deriva carregada no abraço forte do vento, tocando o chão apenas pelo tempo suficiente, necessário a uma alimentação de subsistência.
Há vidas assim… Não se fixam e não se deixam tocar.

Sei que, se fosse um rebento, gostaria de espreguiçar as minhas raízes, lançando-as no mundo, abraçando todas as direcções. Cresceria, verticalmente, no centro da rede e majestosa abriria os múltiplos braços, convidando a vida a construir ninhos por entre os meus cabelos. O vento não me faria tremer, ainda que rodopiasse, agitando ou até arrancando algumas folhas. Sorriria, ao vê-lo carregar uma trança do meu cabelo!

Logo, quando pequenos bicos reclamarem alimento, verei nos espelhos d’água, como fico bela, ornamentada por flores… Amores… Uns produzirão frutos suculentos, outros apenas sangrarão nos espinhos ocultos.
Perguntem-me porque a beleza necessita de espinhos… Eu vos direi que a formosura se reveste de saliências agudas para sua própria protecção. Por outro lado, a verdadeira perfeição obriga-nos a carregar as farpas que retiramos de outro alguém… Alívio de uns, martírio de outros.

Se fosse um rebento também procuraria transformar as impurezas em algo melhor, algo que pudesse libertar. Não sei se concordam comigo, mas julgo que só devemos dar ao mundo a melhor parte nós. O restante deve descer ao subsolo e deixar-se doutrinar pelas raízes, convertendo paz em alimento e alimento em vida. Só assim, poderemos ascender e abrir aos céus os braços sem qualquer receio.
Amores… Uns produzirão frutos suculentos, outros apenas sangrarão nos espinhos ocultos.

Observo o quadro natural que se ergue perante os olhos, admiro a simplicidade do seu existir. Pergunto-me quantos antes de mim pararam, extasiados, perante a magnitude de tão majestosas árvores, surgidas em terreno fértil e que um dia foram tão frágeis rebentos…

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O Encantador da Lua


Estou inquieta na minha aparente imobilidade.

Uma estátua pela água e pelo vento esculpida, que se inquieta e que sonha com o movimento que não tem...

Na verdade, desde que saltei do bloco disforme da minha essência, material, vivi uma existência tranquila!

Longe do lugar da minha criação, num recanto ajardinado, passei os meus dias observando a vida sem me deixar perturbar pelo que via e as noites ouvindo sem que o som fizesse eco dentro de mim.

O Tempo, sempre apressado, não tinha qualquer importância e o meu canto, mesmo em noites desertas, não era um lugar solitário...
Tenho por companhia um banco de jardim e a hera que cresce e tece um agasalho improvisado. O banco conhece o movimento diário de estranhos que se sentam sem pedir licença e falam como se não pudesse ouvir. O banco não só ouve, como conta e a hera, que cobre todo o parque, encarrega-se de segredar todas as conversas de todos os bancos.
Há muito que ouvia falar de um ser misterioso, alguém de quem não se conheciam palavras, mas que todos tinham, em algum momento, escutado. Confesso que nunca dei muita importância a essas histórias e que não partilhei do mesmo entusiasmo com que falavam do "Encantador da Lua". Encantador era o adjectivo que reunia o maior consenso e da lua porque este estranho, aparentemente, só visitava o parque em noites de lua cheia.
Certa noite, uns passos silenciaram as cigarras e o meu recanto encheu-se de silenciosos e expectantes espectadores.
O vulto sem rosto nada disse quando se sentou no banco do meu jardim. Ali ficou alguns longos minutos, o tempo suficiente para até o Tempo abrandar... Depois, como se soubesse esperado, ergueu-se e tocou!
Movimento...
Ondulação...
Brilho...
Todos pareciam suspensos e cativos.
O próprio céu derretia-se e as nuvens dissipavam banhando-o com o luar.
Eu não fiquei indiferente, procurei ver e ouvir como quem quer sentir. Perturbei-me com a intensidade sonora e senti... Emoção!?
Olhei, como quem quer ver...
Primeiro vi o arco, depois as mãos e a seguir um rosto que tocava com os olhos centrados no coração.
Sorri. Fechado no seu mundo de música, aquele melódico e encantador vibrar trespassava todos os meus poros e libertava-me da água absorvida e nunca antes notada. Deveria pesar porque me senti mais leve...
Deixei-me ficar a ouvir até que o céu me pareceu mais brilhante e mais próximo. O Encantador da Lua olhava-me com os seus olhos de prata estelar e eu senti-o pulsar dentro de mim, enquanto me deixava levar por um sono profundo.
Não parecia dormir porque flutuava... Foi então que vi os ponteiros suspensos de um relógio, a luz de cem velas lunares, um chão pintado de folhagem vermelha, um prado verdejante e um castelo de onde partiam e regressavam, como uma nuvem colorida, aves de todas as cores.
Na torre do castelo, o Encantador da Lua tocava o seu violino e as notas vertiam como numa cascata do arco-íris, pintando tudo ao seu redor.
Dancei! Rodopiei num tabuleiro de aguarelas pintando também o meu caminho, olhos fechados, coração palpitante, alma leve... Sabia o caminho de cor.
Já no castelo, encostei o ouvido às pedras, acariciei-lhes as arestas e murmurei, sem saber porque o fazia… Voltei!
A gigante porta de carvalho abriu-se e ao entrar outras portas abriam-se sem que lhes tocasse, guiavam-me e o meu coração dizia para me deixar guiar.
À torre subi sem qualquer esforço, estremecendo ao tocar nas pedras das suas paredes cobertas pela hera. Estremecia porque sentia como se tocasse em mim... Fui feita daquelas pedras… Existi!
Já existi antes de ser estátua, antes de ser pedra. Amei e adormeci vítima de um encanto, fruto da inveja e da cobiça.
Aquela música – inspirei como se a respirasse – foi escrita para mim... Tinha o dom de me fazer lembrar, ainda que não quebrasse o feitiço.
Ao aproximar-me do Encantador da Lua senti um calor diferente das tardes de Verão no meu recanto florido. Era como se o sol estivesse dentro de mim e ao vê-lo, sorria mil raios de luz. Recordava…
Do alto da torre, olhei para o jardim colorido que se estendia no horizonte, sei que corri por ali, rindo. Na sombra de um velho carvalho, numa cama de pétalas, lábios de cereja encontraram uma boca de pêssego, cabelos de ébano deslizaram por uma escova de dedos, ventres de um rosa suave e de um puro jasmim entrelaçaram-se como trepadeiras… A lua cresceu intensa e cheia mimou os amantes.
Aos primeiros raios da aurora, o acordar abrupto e a varinha macabra ditaram os termos do castigo. Era a noiva prometida que não quebrara a promessa feita pelo coração e por não renegar a tão forte sentimento, em pedra a transformaram e da pedra construíram a torre carcereira.
Juntos, mas separados para sempre… Um condenado à eternidade, o outro ao esquecimento.
Agora vejo-o como ele me vê, mas antes que lhe pudesse dizer, quebra-se o encanto da lua e regresso ao meu recanto, presa nesta forma de pedra que sente... Uma estátua pela água e pelo vento esculpida, que se inquieta e que sonha com o movimento que não tem… Até à próxima lua cheia...

Autor desconhecido (contém hiperligação para a página de origem)