sábado, 28 de fevereiro de 2015

Viagem introspectiva

Fotografia de: Um outro Olhar (contém hiperligação para a página do autor)



Os dias vão sucedendo a novas noites e a outros dias, imitando o movimento das ondas que grava no meu rosto as marcas das marés. A caminhada deixa marcas, o caminho é marcante e o Tempo não se ilude, ainda que eu o faça.

Estou na praia… Procuro a ilusão que o mar me oferece de todas as vezes que o visito. Ilude-me ao apagar os vestígios da nossa existência. Olhamos para trás e o movimento erosivo das ondas dissolveu cada passo que demos. Um novo passo, uma primeira marca, um começar mais do que recomeçar. Prefiro inícios a recomeços. Não há bagagens, a mala de mão não pesa tanto e a esperança preenche todos os brancos.

Sempre que necessito de um reforço de esperança, vou para a praia andar. Sempre que desejo olhar para trás, vou para a praia observar o mar. As ondas hipnóticas, que se cheiram de olhos fechados, fazem parar o Tempo. Os dedos que enterro na areia sorriem ao largar o cabelo à sua sorte… Uns são cabo, outros a antena, mas é a pele que me devolve a cada raio de sol.

Mantenho os olhos fechados até ouvir a música que anuncia a sua passagem, fala-me de amores, de partida e de outros mundos. Os lábios relaxam sorridentes, reconhecem a viagem.

Inspiro, procurando condicionar os sentidos. Sinto… Sinto a cidade pulsar como em outros tempos, ouço a brisa no tecido das barracas de rua, o arrulhar dos pombos na dança pelo pão… Recordo… Sei que estou a chegar, de que lado venho e para onde vou.

Preparo-me para o reencontro. Sei que vou querer ir atrás de mim. Concentro-me em me ausentar. Quero-me tanto que me abandono.

Apelo a todos os sentidos. Aperto a areia entre os dedos enterrados. Viro a cabeça no sentido do vento para que os cabelos esvoacem e dou o corpo ao sol. Os lábios sorriem recetivos, reconhecem a viagem.

Ali estou, a caminho (caminhando como se flutuasse e crendo num eternamente) … Revejo-me enternecida pela esperança que reluz nos seus olhos. Sei para onde olha e o que deseja. Invejo-lhe a felicidade da ignorância. Em breve tudo estará terminado, mesmo que sob a pele perdure e lhe pese os passos.

Ela desce até à praia e entra no mar como se não pudesse conter um fogo que a consome. Mergulha e vem à superfície ainda trémula. É demasiado. A pele que queima, os dedos que agarram e apertam, os lábios que respiram entreabertos, aflitos… A febre toma o lugar da esperança. Ainda assim, se pudesse, tomaria o lugar daquele Eu.

Ela saiu da água, decidida. Nada posso fazer para a avisar. Vejo-a afastar-se, sem hesitar a cada passo que dá. Em breve fará o oposto do que escolheu e tentará ser quem nunca quis. Naquele momento a fuga pareceu-lhe inevitável, uma questão de vida ou de morte.  Passará a vida a fugir.

Vejo-a ir e não a sigo, sei para onde vai e o que a espera. Não pretendo recriar os seus passos. Não quero recomeçar. Olho para trás, vejo de onde vim. Anseio ver, antes que o mar apague os meus passos, o calor a pintar paredes brancas, os degraus que o meu desejo conhece de cor, a cabana a que chamo de casa.

A noite está quase a cair, sucedendo-se novos dias e outras noites. A ilusão que o mar oferece impõe que procure a esperança. Olho para trás e o movimento erosivo das ondas dissolveu cada passo que dei… Dou novos passos. A cada passo, uma nova marca, um começar. Prefiro inícios a recomeços, mas a caminhada deixa marcas, o caminho é marcante e o Tempo não se ilude, ainda que eu o faça.

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